Eu precisava trabalhar. Tinha 17 anos, prestes a completar 18. Por ter uma adolescência rebelde, a pressão por começar a trabalhar era forte. Após tentar várias empresas e ter a frustração de não receber respostas da empresa mais renomada na época, finalmente fui chamado para uma entrevista. A pressão da primeira entrevista de fato não existiu, pois eu sempre fui preguiçoso e combinava com os amigos na escola para eles fazerem o trabalho que eu apresentaria, logo, seria tranquilo conversar sobre o quanto eu estaria disposto a trabalhar, em troca de não precisar mais ouvir meus pais reclamando que haviam pago o curso técnico caro para um adolescente preguiçoso.

Eu sempre tive muito medo da minha mente, das peças que ela poderia me pregar. Sonhava que havia ido pra escola e havia esquecido de colocar a roupa, eram correrias para tentar me esconder do vexame de ser visto nu na escola. Por estes motivos, sempre chegava cedo, para ter tempo se algo desse errado. Não foi diferente no primeiro dia de trabalho, cheguei pelo menos meia hora antes do combinado.

Eu iria trabalhar como terceiro em uma indústria, então no caminho entre a empresa que me contratou e a industria que eu trabalharia, eu tentava demonstrar muita disposição. Em um determinado momento a mulher que a partir daquele momento eu a chamaria de minha chefe, falou sobre o calor que fazia no dia e comentou que era sorte ter ar-condicionado onde eu trabalharia. Eu prontamente respondi dizendo que não teria problemas se não houvesse, pois eu estava ali para o que der e vier. Ela sorriu. Ali percebi a ironia do sorriso, que entregava a cena cômica de um jovem no seu primeiro dia de trabalho.

Ao chegar, para minha grata surpresa, uma das pessoas que eu trabalharia estudou no mesmo colégio que eu, alguns anos na minha frente. Nos conhecíamos pois jogávamos os campeonatos regionais pelo time do colégio. Ali aprendi a minha primeira lição, que eu levo até hoje: Seja legal com todo mundo, mesmo com os que não são legais com você. Poderia ter sido qualquer pessoa no qual eu tivesse estudado. Poderia ser um dos caras manés da sala, poderia ser um dos CDFs, poderia ser algum dos caras da “galera” rival. Tive sorte, foi uma pessoa que apesar de não conhecer muito bem, era um amigo. Naquele momento me senti aliviado, pois eu era um aluno com péssima reputação e se fosse alguém no qual eu tivesse tido algum problema no colégio, eu estaria ferrado.

Observando os rituais da chegada, os minutos que passavam me deixavam ansioso por começar. Era a espera por algo com proporções mágicas, pois finalmente após anos e anos indo mal no colégio, iria começar o meu primeiro dia de trabalho. A primeira tarefa oficial foi então passada: estudar o manual do sistema, uma apostila encadernada com espiral barato, que tinha mais que trezentas páginas. Eu olhei aquela apostila com muito carinho, até o momento em que a chefe foi embora. Depois, nunca mais abri uma página daquele manual. Além da apostila, recebi uma estação de trabalho, um computador com bloqueios de internet e acesso apenas aos sistemas necessários para trabalhar. Entre ler aquela apostila e vasculhar aquele computador bloqueado, ficou obvio a segunda opção. Eu vasculhei cada tela do sistema, tentando entender como ele era feito, o que as pessoas que estavam por trás pensaram no momento em que estavam construindo-o. Por fim, eu acabei tomando gosto por ler o que os clientes reportavam e tentar encontrar uma lógica para o comportamento que estava ocorrendo. Em poucas semanas, conhecia muita coisa, sem nunca ter lido uma linha do bendito manual. Minha sorte, pois uma das minhas avaliações de desempenho na época seria responder perguntas sobre o sistema.

Estava tudo tranquilo, eu sabia bastante sobre o sistema e chegava a surpreender, enquanto meu amigo se esforçava para trabalhar e achar coisas pra eu fazer. Eu me sentia muito feliz, apesar de não fazer nada muito útil naqueles primeiros dias. Tudo corria bem, até que em um determinado dia, daqueles em que tudo dá errado pra todo mundo, não sobrou outra alternativa a não ser o meu amigo me delegar uma das tarefas que não estava no meu escopo: ligar para um cliente. Eu lembro até hoje, o quanto eu tremi naquele instante em que ele me pediu isso. Eu me dava bem conversando com as pessoas, dada a minha habilidade conquistada após anos apresentando trabalhos na escola, mas ligar para alguém que eu não conhecia para falar sobre algo que eu não tinha certeza de que havia compreendido, era desesperador. O medo da minha mente me pregar uma peça, me fez imaginar milhares de situações embaraçosas. Aqueles minutos entre dizer que havia entendido e digitar os números para ligar, me fizeram ao final do dia, ter uma das piores dores de cabeça que me lembro de ter tido. Era algo totalmente novo, totalmente diferente de tudo que eu já havia feito na vida. Era assustador. Anos depois encontrei em um livro do Saramago algo que representa muito bem aquele momento que vivi:

“Autoritárias, paralisadas, circulares e às vezes elípticas, as frases de efeito, também jocosamente denominadas pedacinhos de ouro, são uma praga malígna, das piores que têm assolado o mundo. Dizemos aos confusos, Conhece-te a ti mesmo, como se conhecer-se a si mesmo não fosse a quinta e mais dificultosa operação das aritméticas humanas, dizemos aos abúlicos, Querer é poder, como se as realidades bestiais do mundo não se divertissem a inverter todos os dias a posição relativa dos verbos, dizemos aos indecisos, Começar pelo princípio, como se esse princípio fosse a ponta sempre visível de um fio mal enrolado que bastasse puxar e ir puxando até chegarmos à outra ponta, a do fim, e como se, entre a primeira e a segunda, tivéssemos tido nas mãos uma linha lisa e contínua em que não havia sido preciso desfazer nós, nem desenredar estrangulamentos, coisa impossível de acontecer na vida dos novelos e, se uma outra frase de efeito é permitida, nos novelos da vida. Marta disse ao pai, Comecemos pelo princípio, e parecia que só faltava um e outro se sentassem à bancada a modelar bonecos entre uns dedos subitamente ágeis e exactos, com a antiga habilidade recuperada de uma longa letargia. Puro engano de inocentes e desprevenidos, o princípio nunca foi a ponta nítida e precisa de uma linha, o princípio é um processo lentíssimo, demorado, que exige tempo e paciência para se perceber em que direcção quer ir, que tenteia o caminho como um cego, o princípio é só o princípio, o que fez vale tanto como nada.”

Hoje, depois de anos trabalhando e passando por diversas situações, sempre lembro do dia que tremi para fazer uma simples ligação telefônica, a primeira. Por mais simples e fácil que algo possa parecer ser, quando você o faz pela primeira vez, o desconforto é natural, para não falar do desespero. Por isso, sempre que pedir para alguém algo, lembre-se, pode ser a primeira vez que a pessoa fará aquilo e por mais trivial que seja, poderá marcar para sempre a vida dessa pessoa.